Mensagens

A mostrar mensagens de maio, 2008
Imagem
Somos distraídos por natureza. Mesmo que debaixo dos nossos olhos o sol desenhe arabescos no tampo da mesa metálica só os vemos quando a fotografia fortuita nos dá uma cotovelada. Só abarcamos o óbvio. Benditos os que vivem da arte e da poesia. São os que conseguem olhar directamente para o sol e não ficam cegos.

A menina nua da avenida

Imagem
"Menina nua" na Avenida dos Aliados. Escultura de Henrique Moreira, 1929. Estou apaixonado pela menina nua da avenida. Sempre que me vê sorri de forma diferente. Da última, fez-me lembrar a Mona Lisa num sorriso ambíguo e enigmático que me deixou à deriva. Já a senti maliciosa. E envergonhada. E divertida. E atrevida. E inocente. E efusiva até, de cachecol ao pescoço vestida pelas cores das vitórias dos clubes do Porto. Já a vi rir-se com desdém dos políticos vaiados pelas manifestações. E sei que atura com a boa disposição do costume os bêbedos e os sem-abrigo que passam a noite com ela. Não lhe conheço casos amorosos e quase podia jurar que goza com os comentários provocatórios arrulhados pelas pombas frequentemente pousadas nos ombros e na cabeça. Dizem que nas noites de lua cheia de cio, salta do plinto, lava-se na água dos mascarões e vai matar o desejo com os homens-estátuta dos prédios vizinhos, na Pensão Avenida, mesmo ali ao lado. Da última vez, roído de ciúme, pergu

Justiça divina

Já por várias vezes Ferreira Torres disse acreditar na justiça divina quando está a braços com a justiça terrena. A última sessão do julgamento do antigo presidente da Câmara de Marco de Canaveses foi disso exemplo. A meio da tarde, com os apaniguados a encheram a sala de audiências e o colectivo de juízes retirados para decidir sobre um requerimento, o ex-autarca socorreu-se frequentemente da expressão “por amor de Deus” para reverberar uma indignação de circunstância de que vos vou dar conta. O diligente funcionário judicial, ciente do poder que a placa do Ministério da Justiça pendurada na lapela do casaco lhe dá, não disfarçou o sotaque autoritário da Régua quando pediu o Bilhete de Identidade de uma senhora da assistência, suspeitando que a criatura pudesse ser testemunha do processo. Como uma mola, Ferreira Torres levantou-se do banco dos réus, despiu a condição de arguido - acusado de corrupção, extorsão, abuso de poder, peculato de uso - e armou-se em advogado de defesa da pobr

Quando o trabalho mata!

Imagem
O senhor Manuel mata-se a trabalhar. Nasceu em 1951 e hoje tem, portanto, 57 anos. Na altura em que o país se viu livre da ditadura ele livrou-se da tropa e retomou o seu emprego nos caminhos-de-ferro. Começou a trabalhar com 14 anos mas só aos 17 é que foi legalizado fazendo descontos para a Caixa de Previdência. Fica a dever à sorte e à competência o facto de nunca ter estado em situação de desemprego e à saúde apresenta a factura de raramente ter que justificar faltas ao patrão. Ao todo já trabalhou durante 40 anos. Cumpridor, exigente consigo próprio e com os outros o senhor Manuel anda cismático. Não consegue perceber o Estado que, à medida que ele se aproxima da idade de reforma, vai esticando o prazo. É uma viagem cujo destino fica mais longe por causa da alta velocidade desta vida, pensa ele, de cara quase encostada ao vidro do comboio todas as manhãs quando se desloca para as oficinas de manutenção da CP, onde é encarregado. A partir de 1993 a pensão era calculada sobre a médi
Imagem
Só por mera distracção não se repara nos pingos de vermelho puro que a terra sangra espontaneamente por esta altura nos campos de primavera. São papoilas, pequenas flores que cicatrizam imediatamente se forem colhidas. Dizem que vieram do Oriente com os cereais, que têm um poder narcótico e tendem a desaparecer com o uso de herbicidas que as tratam como se fossem ervas daninhas. Dizem que se tranformam em ópio. Deve ser por vingança...

O Pintor de Batalhas

Imagem
O livro O Pintor de Batalhas, de Arturo Pérez-Reverte é uma reflexão profunda sobre a tensão estética entre fotografia e a pintura. O livro é um triângulo de relações em desequilíbrio: Faulques – repórter fotográfico de muitas guerras – Ivo Markovich, soldado croata fotografado, capa de muitas revistas de informação no mundo inteiro - e Olvido Ferrara – antiga estudante de História da Arte, modelo fotográfico até “decidir passar para o outro lado da câmara”, morta por uma mina nos Balcãs. O livro é uma lição sobre o poder da imagem. O livro é uma história de amor entre dois colegas de profissão no meio da paixão da fotografia de guerras, em busca de si próprios. O livro é um tratado sobre a limitação da fotografia perante a perfeição da pintura. Constatação evidente quando Faulques e Olvido contemplaram o quadro Tebaida , de Gherardo Starnina, na Galeria dos Uffizi, em Florença. Um quadro, que alguns atribuem a Paolo Ucello ou a Fra Angelico. “À força de as observares, algumas destas