Vale de Cerdeiras


Lembra-se de me ter dito, há onze anos atrás, enquanto mudávamos de sítio as primeiras pedras, que eu nunca havia de construir aqui nada? Eu consigo rever a ambiguidade do seu rosto num sorriso de reprovação e ao mesmo tempo de orgulho, enquanto os seus olhos pediam uma reacção... Tínhamos contratado uma retro-escavadora para reconstruir as delimitações do terreno. Você era sempre assim. Mesmo não concordando com as minhas ambições e com os meus sonhos mais irreais ajudava e alinhava como se fosse a coisa mais importante a fazer. Eu sei que quando sentenciou o futuro daquele pedaço de terra pensava no melhor para mim. Nos passos largos que podiam tolher a corrida. Mas, sempre a sonhar os meus sonhos. Ele lá sabe devia dizer a si próprio quando toda a sua vida lhe dizia o contrário. Eu ouvia em silêncio, mas aquilo fazia mossa. Chegavam-se à frente as dúvidas e a falta de condições, mas à força de tanto querer resolvia acreditar que de alguma maneira havia de acontecer. Lembra-se? Falávamos por silêncios. Sempre achei que você podia e merecia ter sido tudo na vida, mercê da sua inteligência e sensatez. Sempre pensei que a dose de sensatez anulou muito do risco que não chegou a tomar. Era a sua forma de segurança que eu combatia com miragens, teorias escolares e muita ambição. Não vivi o tempo das grandes dificuldades, claro, por sua causa, foi capaz de preservar a família aos sacrifícios, mas podia ter sido muito mais. O meu silêncio tinha essa crítica como alicerce.
Nunca hás-de construir aqui nada... e ajudou-me a plantar árvores, que secaram. Todas, menos uma que agora me faz recordar aqueles breves instantes. O cedro é você. Forte e discreto como sempre. E a pia enorme em pedra que eu logo vi como lavatório rústico... cá está como lavatório.
Reparou nas árvores que plantei? À entrada vão florir dez cerejeiras, ou melhor cerdeiras, que é como lhes chamam por estas bandas...
O quê? Diz-me que passaram onze anos... e que continua a ser uma asneira. Eu sei. Foi uma processo longo em que a minha teimosia tomou o comando. Sempre que questionava o avanço do projecto, e depois os sucessivos adiamentos do início da construção, pensava em si e no seu cepticismo. E dava mais alguns passos. Não o fazia contra si, fazia-o para lhe provar que no fundo tinha razão a meu respeito: eu arriscava em demasia, eu desejava demais, mas fazia sentido. No fundo eu também sabia que representava o que você nunca quis fazer mas gostaria que eu fosse capaz.
Imagino o que me teria dito se estivesse comigo quando decidi avançar para a loucura de erguer paredes e dar corpo ao projecto. Grande demais, caro demais, para quê?, não sabes no que te estás a meter... parece que o estou a ouvir. E a ver, ao meu lado, a ajudar.
Mas não estava. Por sorte tive outro apoio. Alguém que acreditava em mim de forma diferente. Acreditava que eu era capaz, ia conseguir e podia fazer tudo o que sonhasse. Fazia-me sentir maior do que eu próprio. Fez-me bem. Habituei-me a ver o meu sonho através de outros olhos. E a realidade ainda ficava mais bela. Foi uma força essencial e ao mesmo tempo uma razão. Vocês são pessoas muito especiais. Um dia havemos de falar disso.
Chamei-o agora para lhe mostrar a obra e ter o enorme prazer da partilha. Bem melhor do que eu próprio imaginava. Sem cedências e sempre segundo o princípio da exigência e da qualidade. Sim, sinto o orgulho próprio e sinto o orgulho disfarçado que sente. E a preocupação também. Consegui. Olhe. Veja como é tal e qual como a sonhei.
Para quê? Habituei-me a ver este sitio como uma oportunidade para ser feliz, tal como o escrevi há dois anos. Foi com esse intuito que cheguei até aqui. Fi-lo por mim e pelas pessoas que gostam mais de mim que eu próprio. Gostava de o convidar para jantar comigo um dia destes para conversarmos tudo o que ficou por dizer. Apareça.
É verdade... corro o risco de não ter que lhe meter dentro. Agora que fala nisso...Pode vir a ter razão: às tantas nunca hei-de construir aqui nada... mas, olhe, é um sítio perfeito também para se ser infeliz...

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