A segunda vida de um piano centenário

Os objetos de culto são aqueles que nos guardam lá dentro. Para além da utilidade já extinta ou não; para além do juízo estético, que varia consoante o gosto, os meus objetos de culto têm esta característica: mesmo nunca me tendo pertencido é como se sempre tivessem sido meus.
É o caso do piano que acabo de acolher em minha casa. Um Ritmuller que, segundo o número de fabrico, 23408, foi construído entre 1910 e 1915. Tem mais de cem anos, portanto.
Não sei tocar piano, mas sempre fiquei fascinado pela voluptuosidade da forma e pela completude versátil do som.
A história que aqui conto veio dentro da meia cauda deste centenário instrumento musical.

Ao contrário do preço, o anúncio da venda do piano na internet não era atrativo. Mesmo sendo usado, as fotografias de má qualidade davam ideia de se tratar de um velho piano, talvez, em fim de vida.
Combinado o encontro, num apartamento no décimo andar de um prédio da zona do Foco, no Porto, fui recebido pelo vendedor. Um homem distintamente maduro, de poucas palavras, explicou que vendia o piano da mãe, antiga professora de música, entretanto falecida.
Acariciei o piano com a ignorância saloia de quem aprecia uma enorme caixa de sapatos. Toquei no teclado à toa e confirmei que algumas teclas ficavam presas. Pouco me importava. O piano exibia um orgulho vetusto que me agradou. Era castanho, na minha ideia de beleza era preferível que fosse preto, mas aquela madeira, aquelas formas, seduziram-me.
Negociei o piano com transporte incluído. Cheguei a acordo por telefone, ao jantar, quando o vendedor Eduardo me avisava que havia outros pretendentes.
Ao outro dia, na troca de emails com o vendedor para efetuar a transferência, fui desassossegado pela assinatura: Eduardo Soveral.
Em poucos minutos de busca no Google descubro alguns nomes com o apelido Soveral. Não muitos e entre eles o de Hélia Abranches de Soveral. Transcrevo o que vem na Wikipédia:


Foi com curiosidade incrédula, mal disfarçada, que telefonei a Eduardo Soveral, a pretexto de combinar o transporte do piano, e lhe pedi permissão para fazer uma pergunta indiscreta:
- Disse-me que está a vender o piano que pertencia a sua mãe. Posso perguntar o nome dela?
- Pode. A minha mãe chamava-se Hélia Abranches de Soveral.
- Não acredito… a pianista, professora do Conservatório de Música do Porto?
- Conhece?
- Não. Mas no Google aparecem muitas referências e despedidas…
- A minha mãe era pianista e professora de música. Faleceu em 2009 e nós optámos por vender agora o piano já que ninguém quer ficar com ele. Ocupa muito espaço e a minha irmã, que também é pianista, a Madalena Soveral, já deve ter ouvido falar, tem um piano.
- Quer dizer que... eu comprei o piano de Hélia Soveral?
- Sim, era onde a minha mãe ensaiava e dava algumas aulas em casa… Deve ter para cima de 40 anos…

Por esta altura os restos das dúvidas desta compra impulsiva foram reciclados. “Compraste uma bonita caixa de madeira castanha, com forma de piano, e uma história surpreendente. Vais ter em casa o que sobreviveu do piano de uma grande pianista portuguesa… Que honra!”
Na semana entre a compra e o dia do transporte a curiosidade não mais deu sossego. “E se por acaso, para além do objeto decorativo, também for um instrumento musical? É certo que algumas teclas estavam presas, o que normalmente é mau sinal, mas será recuperável?"

Afinadores de piano. A busca começou. Falei com vários. E as expectativas iam baixando. Eduardo Soveral também me ajudou enviando os contactos do afinador dos pianos da escola onde a professora Hélia dava aulas. E, suspeitava ele, até terá ido afinar o Ritmuller lá a casa, não tinha a certeza. Manuel Macedo. Pelas minhas contas devia ser um velho amigo da pianista. A senhora morreu com quase 90 anos, em 2009. Teria muita sorte se encontrasse o afinador.
Depois de inúmeros telefonemas Manuel atendeu. Vibrou ao ouvir o nome da professora e não se lembrava do piano lá de casa. Consegui motivá-lo a fazer uma visita ao décimo andar do Foco onde estava o piano à espera de ser trasladado. Foi mais cedo do que me disse. Logo ao outro dia de manhã telefonou-me:
- Já fui ver o piano.
- Tinha-me dito que só podia…
- Fui ontem. E é verdade. Quando vi o piano recordei-me que o afinei algumas vezes.
- E então?
- É um piano antigo com muitos anos…
- Sim, mas é um piano, propriamente dito. Recupera-se?
- Sim, sim, eu afino-o.
- Mas, não é isso… Vale a pena?
- Vai ficar bem. Não se preocupe.

Sete dias depois da compra o Ritmuller seria transportado para a nova casa. A operação envolveu muita dificuldade. Tratava-se de retirar do décimo andar, pelas estreitas escadas, um corpo de madeira sensível com entranhas de aço, cordas musicais e uma mecânica de pequenas e frágeis peças, que pesava mais de 300 quilos. Falava comigo mesmo para enxotar a preocupação: “Tens um objeto bonito, que, na opinião do Manuel Macedo, ainda é um instrumento musical, uma história incrível e, provavelmente, vai tudo pelas escadas abaixo."
A missão foi entregue a especialistas. Neca Silva e mais quatro ajudantes de peso despiram o piano, retiraram as pernas, o teclado, e tudo o que podia, sem prejuízo, ser separado do corpo. Embrulharam o dorso com cobertores, proteções de cartão e plástico e preparam um estrado próprio para facilitar o deslizamento nas escadas. Neca Silva olhava-me com muita desconfiança por culpa da máquina de fotografar pendente do ombro.
- Amigo, se vai filmar, isto pode correr muito mal…
- Só peço que o tratem bem.
- Deixe isso connosco. Se soubesse no que me estava a meter quando aceitei este serviço… Não ganho juízo…

A voz de comando alternada com os resmungos não deixava espaço para brincadeiras e muito menos para o registo da operação dos carregadores do piano. Nas escadas estreitas e esconsas a cena assemelhava-se a um funeral. O caixão recusava-se a colaborar, retinha-se demoradamente nas esquinas e agarrava-se desesperadamente ao corrimão. Eu parecia sentir dores no corpo de cada vez que o piano emitia sons guturais e agudos de pura agonia.
Consegui ir filmando contrariando as ordens de Neca Silva. Explicou-me mais tarde a síndrome dos donos dos pianos. Sofrem a dor do instrumento quando roça nas paredes e tropeça nas esquinas… Lançam gritos de aviso aos carregadores e assim, diz ele, isso pode desconcentrar a equipa de transporte e a coisa pode acabar mal.

O piano chegou à minha sala no dia seguinte numa operação a dois tempos, retirada do décimo andar e transporte para minha casa, que revelou todo o profissionalismo da equipa de Neca Silva. Já descontraído, com um piano dorido mas intacto, como cenário, desfiou um sem número de histórias de pianos velados pelos donos nas mudanças de residências. E foi aí que me fez mais uma revelação extraordinária:
- Conheço a família Soveral há muitos anos. Sempre transportámos os pianos da escola e de casa. Você sabe por acaso quem levou este piano para o décimo andar no Foco, no Porto?
- Não faço ideia…
- O meu pai.

O velho Ritmuller depressa se instalou e tomou conta da sala. Parece até ter adquirido uma pose altiva e vaidosa, de tampa aberta, mostrando a roupagem interior, libertando uma fragrância antiga tapada pelo luto e esquecimento. Parecia ter saído de uma intervenção cirúrgica em que correu risco de vida. Sobreviveu e, mais do que isso, renasceu.
Respeitei-lhe o recobro e quase não lhe toquei durante toda a semana, enquanto esperava que o afinador viesse prestar-lhe os últimos tratamentos e cuidados.

Manuel Macedo, afinal, era muito mais jovem do que eu imaginara. Durante longas horas reparou pequenas peças, fios, almofadas, batentes, feltros, pequenos martelos de madeira, teclas, molas, folgas, numa relação íntima que os médicos costumam ter com os doentes que conhecem há muito. Limpou, aspirou, recolocou todos os elementos e deu início à afinação propriamente dita.
Corda a corda, tecla a tecla, Manuel exigia à máquina um funcionamento perfeito. O piano emitia gemidos como um paciente queixoso.
- Está pronto. Está afinado. O piano agora vai habituar-se à nova casa. É normal que haja alterações e desafinações. Sabe, os pianos são como as pessoas. Têm as suas manias, disposições e humores. Às vezes não gostam dos sítios onde os colocam. Detestam a humidade e sol direto. Mas, este parece estar feliz…
Antes de arrumar as ferramentas, Manuel Macedo sacou de um velho livro de registos de marcas de piano.
- Quer saber quantos anos tem o seu piano?
- O dono diz-me que deve ter para aí uns 50…
- Ritmuller, nº de registo 23408… Veja aqui. Este piano foi fabricado entre 1910 e 1915. Tem mais de cem anos.
- Não acredito.
- Claro que deve ter levado peças e a máquina não será a original. Mas o seu piano, não há dúvidas, nasceu há mais de cem anos.

Estamos em fase de recíproca descoberta. Apesar da aparência formal e não obstante o seu passado distinto, o velho Ritmuller suporta diplomaticamente a minha total inabilidade musical. Deselegante, por vezes descarrego nele a minha frustração. Nas alturas em que o massacro sei que sente muitas saudades da pianista Hélia Abranches de Soveral. Tolera-me, reconhecido.
Sempre que abro a tampa o velho Ritmuller oferece-me um sorriso de marfim e parece dizer:
- Obrigado. Prometo não te deixar sozinho…


Comentários

Anónimo disse…
Caro Victor Pinto
Fico contente em saber que esse piano da minha Hélia está com uma pessoa que estima e valoriza a sua história.
Lembro-me bem dele, sobretudo quando a minha tia ainda vivia numa casa em Gomes da Costa. Nele vi muitas vezes a minha prima Madalena, hoje uma pianista celebrada, a treinar quando ainda era estudante.
Cumprimentos,
Manuel Abranches de Soveral
Victor M. Pinto disse…
Caro Manuel Abranches de Soveral,

Obrigado pelo seu comentário. Só lhe respondo agora porque estava a preparar um pequeno video que sublinha a história que tentei contar no texto e que já acrescentei.
Sinto-me honrado por ter em minha casa um objecto com tanta vida. Com tantas vidas.

Cumprimentos

Victor Pinto
Anónimo disse…
Caro Victor

Fiquei encantado com a história do teu piano e o texto em que descreves embevecido todo o acontecimento, acompanhado da inevitável reportagem. Muito Bom...

Um abraço

Gil Castro

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