SILHUETAS

O Roteiro Para a Inclusão, há cerca de um ano atrás, levou Cavaco Silva e a comitiva até Marco de Canaveses para declarar um combate cerrado às causas e efeitos da violência doméstica e maus-tratos infantis.
Uma mulher, discreta, chegou cedo e ficou o mais próximo que pôde do epicentro da cerimónia. Devia estar em chamas por dentro, mas do olhar azul, vivo, saía uma calma de quem queria tudo ver de muito perto, com os próprios olhos. Tinha um feminino corpo robusto que os mais de cinquenta anos não conseguiram desfear. Encostada à linha de segurança que a separava dos “importantes”, viu e ouviu tudo em religioso silêncio. Viu e ouviu o Presidente da República dizer que se curvava perante as 29 silhuetas de mulheres e 3 silhuetas de crianças assassinadas por mães, pais, irmãos, maridos, namorados, companheiros…
Os artistas transformaram as estatísticas oficiais de 2005 das vítimas mortais de violência doméstica numa instalação com silhuetas de cartão. No peito das silhuetas, num anúncio funerário, contava-se em poucas linhas a história da morte: “Rosa, 38 anos. Degolada pelo ex-companheiro”; “Leonor, 70 anos. Morta à martelada pelo marido”; “Menino, 8 anos…” 32 vezes.
A mulher de olhos azuis, vivos, fixos, agarrava uma das silhuetas de cartão. Instáveis. Frágeis. Viu e ouviu o Presidente dizer que a violência doméstica incomoda e envergonha o país. Que é preciso derrubar os muros de silêncio. A mulher-estátua, de olhos azuis, a segurar a silhueta instável, aguentou o calor que fazia no branco Siza Vieira do adro da Igreja de Santa Maria no Marco de Canaveses. Não se mexeu. Nem mesmo quando a cerimónia terminou e as silhuetas se deitaram no empedrado cedendo à brisa estival. Só quando o repórter se preparava para mais um directo sobre o roteiro presidencial a mulher estátua, de olhos azuis, com chamas no peito, deixou escapar uma espécie de prece agradecida:
- Sabe, eu também podia ser uma silhueta…

Comentários

Anónimo disse…
és bom, muito bom, a fotografar com a câmara e com as palavras. Gosto do estilo, gosto da prosa, gosto da perpectiva crua, profunda, sombrada.

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