Tonight is blues

Tonight is blues.
Pendurada nos acordes do órgão electrónico, a voz negra, a fazer lembrar Tom Waits em noite de bebedeira, preenche a escuridão tingida de luzes coloridas das lâmpadas de presença e velas de sal espalhadas pelas mesas do Hotfive. Já passa da meia-noite. O primeiro andar está quase cheio de fumadores de conversa solta esmagados subitamente pelo swing típico dos blues. No piso de baixo a sala está bem composta. O baterista, Cenoura, já abandonou a mesa brincalhona e os dois amigos que foram obrigados a cheirar os eflúvios das peúgas, das palmilhas e até das solas das botas que colocou ao lado das bebidas. Instalado no meio da bateria, por entre esgares de louco, beijinhos às fãs imaginárias e malabarismos mal sucedidos com as baquetas, aguarda as instruções do líder da banda.
Wolfram Minnemann mantém a cara de miúdo reguila com cinquenta anos, ou mais, bordada por um aro louro de cabelo adolescente e um sorriso desarmante, enquanto prime as teclas. O ritmo do blues vai-se entranhando. “Esta é uma história de uma gaja que gostava muito do seu gajo…” Manuzé, o único com ar de adulto sério, faz vibrar as cordas do baixo eléctrico com a precisão de um relógio mecânico feito por um ourives suíço. “Gostava muito do seu gajo… mas a história acaba mal…” A bateria do desvairado Cenoura acompanha e sublinha o ritmo imposto pelo baixo. “A mulher descobriu que o seu gajo tinha outra… pegou numa espingarda…” As mãos de Minnemann parecem as rodas metálicas de uma locomotiva a vapor. A carruagem do saxofone de Rui Azul atrela-se ao comboio sonoro e dá-lhe um tom de jazz. O blues está em movimento. “Pegou numa espingarda…deu-lhe um tiro e matou-o.” A música entra agora nos carris do ritmo acelerado e a voz da tradução transforma-se em inglês com whisky para cantar a tragédia.
Até às duas da manhã a noite foi fértil em casos de amor com finais deliciosamente tristes. Os protagonistas morriam todos a tiro, desgraçados por fulminantes paixões, esparramados na voz negra de Minnemann, esvaídos em solos de saxofone, arengas de órgão armado em piano, rufos de bateria louca e ritmos sensualmente fúnebres do baixo do Manuzé.
O Hotfive é assim. Um bar mágico que nasceu, há três anos, em completo anonimato na zona histórica, na rua Actor Dias, mesmo ao lado da muralha fernandina. Faz a magia do jazz numa cidade difícil. O sonho do marinheiro Fernando Meireles, que não aguentou terra firme, parece estar a medrar.
Para quem gosta de música ao vivo, jam sessions, jazz e blues. E histórias de amor que acabam deliciosamente mal.

Hotfive, jazz & Blues, Largo Actor Dias , 514430 Porto
http://www.hotfive.eu/

Comentários

Anónimo disse…
"Se eu fosse um peixe..." - continuava Minnemann com ar maroto - "seria um peixe gato! E as peixeinhas todas atrás de mim. Oh filha..."

Adoro o Hotfive.

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