Aquele querido mês de Agosto

Há muito tempo que não ia ao cinema sozinho. A chuva do fim de tarde alertava para a partida do verão, memória a que o título aludia, mas também avisava para a enchente do centro comercial Arrábida, onde a película ainda estava em exibição: “Aquele querido mês de Agosto”, do realizador português Miguel Gomes.
Na sala estavam cinco pessoas. Mau presságio para um filme que me tinham recomendado como uma curiosidade cinematográfica. Se tivesse percebido que o filme durava 150 minutos, (duas horas e meia!!!) provavelmente teria desistido.
Mesmo sabendo que, em termos de gosto, um filme é como um livro ou como um vinho, cada um aprecia à sua maneira, devo dizer que fiquei saciado. Há muito tempo que não me divertia tanto com a mistura complexa da simplicidade genuína que é o Portugal interior, captado na mais apurada essência, por uma equipa de realização que transpôs para a tela a sua própria dificuldade em levar o guião por diante.
Até agora não sei se foi propositado ou não. O filme é, na primeira parte, um documentário sobre as vicissitudes de uma equipa de filmagem na região de Arganil onde, caoticamente, passa da frente da objectiva para os bastidores com a mesma facilidade com que faz dos habitantes locais os protagonistas do enredo. O filme, ficção propriamente dita, só começa a meio e é uma história portuguesa básica que seria assim descrita pela produtora audiovisual lisboeta “O Som e a Fúria” se apenas fosse isso: «Aquele Querido Mês de Agosto acompanha as relações sentimentais entre pai, filha e o primo desta, músicos numa banda de baile».
O filme é sobre o Portugal que existe recalcado em cada um de nós. “Aquele querido mês de Agosto” é uma viagem ao interior do país que já não queremos ver. Onde as noites de calor, que provocam incêndios e depositam acendalhas de paixão nos mais jovens, são apagadas no torvelinho de um copo de cerveja ou de vinho. Onde, ao fim-de-semana, tocam os “Diapasão” de Marante, ouvem-se até à náusea as versões das músicas de Tony Carreira e exibem-se todas as bandas de garagem, nas inúmeras festas populares que congregam os resistentes e os emigrantes. E é com uma delícia envergonhada, num tempo necessariamente lento, que consumimos as histórias mais inverosímeis do Paulo “Moleiro”, vedeta local por se atirar ao rio Alva, da ponte românica de Coja, no Carnaval; ou a conversa desconcertante de um casal de velhos em plena adega; ou as letras traduzidas das canções “pimba”; ou o folclore das concentrações motards de Góis; ou a descrição da misteriosa cura, por intercepção da Nossa Senhora da Saúde, por parte de um porta-andor de circunstância.
Ficção e realidade entrecruzam-se de uma tal maneira que, às tantas, não se descortina onde começa uma e acaba a outra. Saí da sala convencido que a história verdadeira do filme é aquela que se pretende contar: uma equipa de filmagem que não conseguiu filmar o que queria e acabou por se filmar a si própria nessa incapacidade.
E saí convencido de estar perante uma obra cinematográfica notável que sublima essa característica do desenrasque tão típica dos portugueses.
Enquanto descia as escadas rolantes do centro comercial Arrábida não consegui deixar de pensar que muita daquela gente que por ali deambulava na procissão das montras fugiu do Portugal do filme e prefere acreditar que ele não existe.
Mas existe. Basta esperar pelo próximo mês de Agosto.

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