Púcaros de Poesia

É um bar, em Miragaia, no Porto, e não sei porque se chama Púcaros. O nome faz lembrar, quando muito, um restaurante. A alusão ao significado copo é a ligação mais directa ao espaço nocturno. Pode ser que por aí se faça a conotação. Mas, normalmente, púcaro é um copo para tirar água. Bem, talvez aluda ao local onde se descobrem verdades escondidas, o sítio onde os nabos se tiram do púcaro, ou da púcara.
Não faço ideia porque se chama assim ainda para mais sendo um bar onde, às quartas-feiras, a poesia anda à solta pelo meio dos sentidos, sentimentos, corpos e copos...
É isso!!! Púcaros são os recipientes usados pelos estranhos seres que frequentam o bar, nesse dia, para tirar sorvos poéticos do poço da literatura. Eles são bruxas, elfos, vampiros, gnomos, ninfas, unicórnios, querubins, anjos, lobisomens e outros que tais, disfarçados de gente comum.
Eles devem ter obrigado o Carlos a chamar-lhe assim para que lhes sejam servidas as poções mágicas do pote da sangria. O Carlos é o dono do Púcaros. Um rezingão divertido que surpreende os incautos com cumprimentos brejeiros, alusões eróticas e palavrões com sotaque da Ribeira. “Onde me sento, Carlos?”, pergunto. “Alapa-te p’ra aí onde os colhões te deixarem”, responde de chofre e sublinha: "É bom sinal… é porque os tens!”. Uma capa de taberneiro com a qual esconde uma sensibilidade de leitor devotado aos poetas clientes. O Carlos é o guardião do clube dos poetas. Tem o poder de tocar a sineta com que manda calar toda a gente para que as arcadas fiquem prenhes de texto poético. Lido, declamado, interpretado, gritado, sofrido, definhado, exalado, exaurido, vomitado, disparado…o modo é o que menos interessa. Estou convencido que aqueles seres não existem de dia. Acham que pode existir alguém que escreve cartas ao primeiro-ministro e passa os dias a registar poemas dedicados às gajas boas que se sentam na esplanada do Piolho? E o declamador catastrofista que cria ambientes tétricos e quase regorgita sofrimento? E o boémio que interpreta textos em espanhol e acaba a cantar o La bohème, do Aznavour, num francês de ouvido? E o espanhol que tenta dizer poesia em português como se fosse sua a língua de Camões? E a avó, sempre impecavelmente vestida, que serve poemas como se lhe saíssem das entranhas? E o escritor erudito que escolhe os temas e espicaça os estreantes com a poetrix? E o pintor cujos retratos quase nunca saem bem? E…
Não…a mim não me enganam. Aqueles seres não existem. Estão possuídos pelo espírito livre da poesia e transformam-se, às quartas, mal toca a sineta. São, de certeza, empregados de escritório, juízes, advogados, médicos, fiscais das finanças, técnicos, empresários, vendedores…
O Púcaros é, também ele, um mutante. Ora se enfeita de antiguidades e velharias; ora se veste de exposições de pintura; ora se metamorfoseia em palco de teatro, ou em pista de dança do ventre ou de salão.
Tenho lá ido ultimamente. Observo como se estivesse num jardim zoológico em que me foi permitido entrar na jaula dos humanos. Dei por mim a zurrar poesia como se fosse um deles. E, uma destas noites, quando cheguei a casa olhei para o espelho e não me vi. Metade de mim tinha desaparecido…

Comentários

Anónimo disse…
E quem és tu?
A metade que insistentemente se agarra ao espelho lá de casa, ou, qual vampiro; desaperece do reflexo para ser o resto de um anseio qualquer...!?

Ass:
Maldoror
anaas disse…
Lindo, lindo, lindo. Victor, já li muitos " pensamentos" sobre o Pucaros, contudo, foste soubeste vasculhar nas entranhas, aquela parte que muitas das vezes não se vê...nem se adivinha. Que metade de ti tenha lá ficado... acredito... é a maldição do pucaros...e é a razão de lá voltar...quanto mais deixamos, mais trazemos... curioso, não?
Victor M. Pinto disse…
Anaas, tu és um dos anjos que frequentam o Púcaros...
Obrigado.
Raquel disse…
Lá, onde o fumo do cigarro rebelde me tolda o olhar e a luz indirecta escorre pelas paredes, seres secretos celebram a vida.
E por todo o lado salpicam gotículas de poesia num haiku que me revela.

Diz-se por aí que, numa dessas quartas feiras, os dois seres incompletos que se passeam pelos dias se encontraram, como duas metades. A descoberta foi assombrosa, e a magia nunca mais foi a mesma.
Joana M. Soares disse…
Não sei se a B. iria gostar que lhe tivesses chamado avó:-)
Parabéns pelo texto! A tua outra metade está connosco bem guardada!

Mensagens populares deste blogue

Um dia quase perfeito

A segunda vida de um piano centenário

Paulo Rebelo - O profissional das apostas (notas sobre uma reportagem TVI)