E à página 82 Saramago descansou!

(...) O leitor leu bem, o senhor ordenou a abraão que lhe sacrificasse o próprio filho, com a maior simplicidade o fez, como quem pede um copo de água quando tem sede, o que significa que era costume seu, e muito arreigado. O lógico, o natural, o simplesmente humano seria que abraão tivesse mandado o senhor à merda, mas não foi assim. Na manhã seguinte, o desnaturado pai levantou-se cedo para pôr os arreios no burro, preparou a lenha para o fogo do sacrifício e pôs-se a caminho para o lugar que o senhor lhe indicara, levando consigo dois criados e o seu filho isaac. No terceiro dia de viagem, abraão viu ao longe o lugar referido. Disse então aos criados, Fiquem aqui com o burro que eu vou até lá adiante com o menino, para adorarmos o senhor e depois voltamos para junto de vocês. Quer dizer, além de tão filho da puta como o senhor, abrão era um refinado mentiroso, pronto a enganar qualquer um com a sua língua bífida, que, neste caso, segundo o dicionário privado do narador desta história, significa traiçoeira, pérfida, aleivosa, desleal e outras lindezas semelhantes. (...)

O leitor leu bem. José Saramago conseguiu mandar o senhor à merda e chamar-lhe filho da puta, na página 82 do livro Caim. Depois de ter conseguido tal proeza, o vetusto escritor resolveu descansar. Estava contente com a sua obra. É certo que ainda não tinha o número de páginas suficientes para o último livro de um prémio nobel, mas o objectivo principal estava atingido.
Que Saramago não seja católico, que considere a Bíblia um manual de maus costumes, que tenha opiniões e convicções ideológicas que esbarrem na doutrina cristã, não traz mal nenhum ao mundo. O que é lamentável é o exercício pífio e rasteiro que o reputado escritor usou para parodiar o livro sagrado e promover as vendas. Confesso que esperava mais elevação e inteligência. E foi por isso que fiquei desiludido. A estrutura do livro, para além de ridicularizar as cenas bíblicas que mais lhe dão jeito, usa, para isso, um artificialismo de iniciado na literatura: as viagens na máquina do tempo. O livro arrasta-se à procura das cenas mais caricatas, usando uma argumentação digna de mentecaptos, embrulhada no discuro narrativo típico de Saramago.
Caim seria, quando muito, um bom primeiro livro de Saramago.
Por isso, perdoai-lhes senhores que ele não sabe o que escreveu...

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