A pomba suicida

É a persistência daquele som abafado, que não dá tréguas aos meus pensamentos, que me compele a escrever este texto. Para mim foi suicídio.
Mesmo à minha frente, nos semáforos do jardim de Arca d'àgua, no Porto, uma pomba ferida esperava que o sinal ficasse verde, indiferente aos peões. Parecia ter as mãos nos bolsos, com as asas feridas encostadas ao corpo, o que lhe dava um ar de uma dignidade humana. Os carros encostaram os pneus da frente à linha da passadeira e a pomba iniciou a travessia. Calma, determinada, cabeça erguida, sem uma ponta de receio, percorreu os traços paralelos pintados na estrada até escolher um ponto fatal no percurso obrigatório da roda direita do carro que estava ao lado do meu. Ficou à espera do vermelho.
Paralizado pela consciência da desgraça iminente e fascinado pelo gesto tão obstinado não reagi a tempo de pregar o susto que poderia salvar-lhe a vida.
O som. O som da morte. O som indigno do esmagamento inevitável escolheu o meu cérebro para viver durante toda a tarde, de nada valendo a fuga atabalhoada à imagem da pomba esmigalhada na linha branca da passadeira.
De nada valendo a convicção de que se tratou de um honroso suicídio premeditado.

Comentários

Victor, o Creador nos coloca em incertas cenas, intensas para os olhos, pra buscar o que vai nos dentros do nosso imo, creio assim.

São as horas em que Ele nos manda recados... mas às vezes nossos olhos embaçadadamente humanos pelo assombro não nos deixam ver um pouco mais adiante dos ponteiros de segundos ou minutos tão inevitáveis.

Victor, na sua confissão você deu a mais pura e verdadeira resposta a Ele; a súplica de remissão de uma alma que ainda sente a dor alheia, sobretudo dos indefesos animais, criaturas que elegeram o homem por seu deus, mas que o mesmo homem que roga tanto ao Creador quando em aflição, se esquece que é o deus-pequeno dos animais.

Parabéns pelo post-confissão. Emocionou-me, deveras. abs

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