O que é demais é erro!

Confesso que achei piada. Quando recebi a anedota no e-mail sobre as intenções da ASAE em verificar as condições higiénicas em que as hóstias e o vinho eram servidos pelos padres nas eucaristias por esse país fora ri-me da imaginação do autor anónimo. De facto, na sanha persecutória da polícia da segurança alimentar só faltava mesmo o assalto às igrejas durante as missas para inspeccionar as qualidades económico-sanitárias do vinho e a certificação das hóstias. Dei comigo a imaginar os diligentes inspectores a pedirem os documentos de origem do fruto da videira e do trabalho do homem, os recipientes onde é guardado e servido, a limpeza dos cálices. Das hóstias a polícia quereria saber a composição e implicaria com o serviço feito à mão pelos sacerdotes cuja lavagem litúrgica não garantirá a higiene regulamentar.
Confesso que me ri perante a hipótese hilariante aventada no mesmo chiste vaticinando o encerramento dos estabelecimentos religiosos católicos para desespero dos clientes da fé.
O delírio imaginativo servia para realçar uma evidência: a ASAE sofre de excesso de zelo e apresenta comportamento autoritário e autista. Adoptou a bíblia da lei comunitária e quer fazer de Portugal um país europeu segundo o evangelho de Bruxelas. Não se entende a destruição do que, na perspectiva gastronómica, por exemplo, nos distingue dos outros. Neste modus operandi de rolo compressor a ASAE teve um mérito insuspeito: descobriu em Cavaco Silva, mais associado ao consumo do bolo-rei, uma massa fina de ironia, própria de um bolo dos monges. Quando assistia no Mosteiro de Arouca à confecção conventual dos doces e produtos tradicionais usou magistralmente o sarcasmo: "E, então, a ASAE ainda não veio cá?" O gracejo foi um veneno para a polícia das actividades económicas e provocou mais dano do que a audição parlamentar ao inspector-geral António Nunes. Lá diz o povo, que nesta como noutras matérias costuma ter razão: “o que é demais é erro!”
De uma atitude impoluta e determinada a polícia dos gostos e costumes passou a ser associada ao anedotário nacional que corrói mais do que vinagre de almotolia. O filão das hipotéticas inspecções às igrejas deu inspiração para comediantes delirantes. E se a ASAE decidisse fiscalizar a higiene do beijo na cruz durante os compassos pascais? E o anel do cardeal-patriarca não alojará uma colónia de germes que se propaga através do ósculo? E o facto de nas igrejas normalmente não haver instalações sanitárias públicas não pode ser motivo para encerrar os templos? Então e para a distribuição dos hóstias os padres não deveriam usar luvas?
Quando este manancial de chalaças atingiu a saturação e começou a perder a piada surge, em letra de imprensa, o relato de um episódio que me deixou como o diabo perante a cruz. Segundo o Correio da Manhã de 25 de Janeiro de 2008, António Nunes, o chefe da polícia, depois de ter sido entrevistado na RTP 2 ficou à conversa, nos bastidores, com uma jornalista bem conhecida. Para desanuviar o ambiente a jornalista resolveu provocar o inspector-geral da ASAE perguntando ironicamente qualquer coisa do tipo: “ E então quando é que a ASAE vais fiscalizar a forma como são distribuídas as hóstias nas igrejas?” Sem digerir a ironia, num tom grave e sério, ciente do zelo, vestindo a pele de polícia a tempo inteiro António Nunes ameaçou: “Estamos a equacionar esse assunto.”
Sacerdotes, permitam-me o aviso: tende cuidado. Se confiscarem as hóstias, o vinho ou encerrarem as igrejas a celebração ainda será possível. Mas alterem o texto da eucarística se não querem correr o risco de serem acusados da morte de Jesus. Se forem surpreendidos em plena missa não digam, na frente dos inspectores da ASAE, que o vinho é o sangue e a hóstia o corpo de Cristo. Podem ser detidos por suspeita de homicídio.

Comentários

Anónimo disse…
Victor, este artigo está demais.

Cristina

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