A noite tem os olhos abertos

A noite arregalou-me os olhos, chamou-me a atenção e obrigou-me a ficar ali a fazer-lhe companhia. Tem sido assim nos últimos tempos. Está cada vez mais carente, melindrosa e solitária. Espera-me sempre com os braços abertos, tece-me uma rede de carícias e envolve-me numa falsa modorra. Entrego-me sem resistência e fecho os meus olhos, deixo-me levar. Engana-me.
Eis que desperta, escarninha, enérgica, revolta em pensamentos, memórias e desejos. Resolve problemas, antecipa cenários, idealiza situações, faz felicidade, inventa vida, ressuscita pessoas e faz diálogos. Usa-me como brinquedo novo em mãos de criança.
Rebolo inutilmente. Procuro posições de conforto. Finjo-me de morto.
Na inutilidade de passar despercebido, tento desaparecer na nuvem dos cigarros sucessivos. Sopro-lhe fumo para os olhos.
Ela ali está, vestida de negro desafiante, de pálpebras dilatadas. Sei que me vai trair. Finge que está à minha espera para a companhia do costume, mas apenas aguarda o amante fantasma da madrugada que a vai apagar lentamente.
Ontem decidi falar-lhe ao coração:
- Vá lá... Deixa-me dormir...
Ficou amuada, deixou cair umas lágrimas de chuva e ensimesmou-se.
Sorrateiramente adormeci.

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