CRISTO TE AMA?


A fotografia podia ter custado a vida, mil e quinhentos dólares ou a máquina fotográfica que a captou. Ficou por 50 mil pesos colombianos. Foi barata, muito barata.
Há uma zona na cidade de Bogotá, chamada Cartucho, que é considerada um dos sítios mais perigosos da Colômbia. Já de malas feitas para o regresso a Portugal, enquanto aguardávamos o táxi para o aeroporto, lembrei a Alberto Parra que faltava a foto da rua onde todo o tráfico é permitido e ininterrupto, situada mesmo em frente à residência provincial onde tínhamos pernoitado.
Alberto Parra é um antigo toxicodependente que conseguiu a recuperação e trocou a vida ligada ao cinema e às filmagens pela de formador e educador nos Hogares Claret, Bogotá, onde ajuda crianças e jovens cocainómanos a fazerem o que ele fez.
A tal rua de Bogotá é uma lixeira humana. Corpos espalhados pelo chão, comércio de bugigangas, consumo de drogas, crianças, animais, miséria, tráfico, música, dinheiro, lixo, tudo se mistura em dosagens diferentes durante as 24 horas que cada dia tem. Á entrada, a polícia e o exército colombiano têm postos de controlo, com ares de alta segurança, dia e noite. Parecem proteger a cidade daquele acantonamento ilegal e também o contrário. De quando em vez revistam algum sem-abrigo, mantêm uma presença dissuasora e pouco mais. A meio de uma das paredes uma frase escrita a vermelho parece dar melhor garantia: CRISTO TE AMA. É certo que do outro lado, na esquina onde costumam dormir encostados uns aos outros alguns desgraçados, alguém escreveu uma dúvida em tosca caligrafia: Te ama?
Este quadro vivo da miséria humana incomodou-me durante os três dias em que fiquei albergado na casa mesmo em frente. Fotografei do terraço, meio às escondidas, porque me tinham avisado que já por diversas vezes a curiosidade foi varrida a tiro de pistola.
Mas aquele submundo a céu aberto pedia para ser retratado de frente.
Tínhamos tempo. Alberto, que deve sofrer ainda da doença profissional do repórter, escondeu a minha Nikon D80 no saco e dirigiu-se para a boca da rua. No cruzamento com a perpendicular havia uma casa comercial onde se vendiam trapos estampados. Aproveitei o degrau e semi-disfarçado por Alberto e Victor, um outro técnico dos Hogares Claret que, entretanto, no curto caminho se juntara a nós, disparei por seis ou sete vezes, enquadrando a frase redentora da escumalha que deambulava na rua do tráfico. Tentei ser rápido. Recolhemos a câmara no saco e quando virávamos as costas fomos violentamente interpelados por dois presumíveis traficantes que vigiavam a rua sem que déssemos conta.
- Me da el rolo. Me da el rolo fotográfico. Aqui no puedes fotografar.
A intenção era evidente. Os dois homens, ambos com boné a esconder os olhos, ar de rufias agressivos, agiram concertados e decididos. Alberto agarrou-se instintivamente ao saco com a Nikon e abraçou-o com quanta força tinha. À bruta, fomos empurrados para o interior da loja comercial. Os poucos clientes e empregados fizeram de conta que nada estava a acontecer. Estávamos encurralados.
Tentei num espanhol aportuguesado explicar que a câmara era digital, que não tinha rolo, que não sabia que era proibido fotografar, que nem precisava das fotografias, que no meu país… Ambos ficaram surdos às minhas suplicantes explicações. A ordem passou a ser outra. Com a mão direita no bolso do casaco, segurando uma arma, enquanto a outra agarrava violentamente na gola e empurrava para o chão, um dos assaltantes ameaçava Alberto:
- Me da lá camera. Aqui no puedes fotografar. Tienes que pagar. Me da la camera. Me da la camera ou te mato. Mira, te mato…
A voz subia de tom. Alberto protegia mais a Nikon do que a própria vida. Eu ainda acreditava que bastava mostrar aos presumíveis traficantes a destruição digital das fotografias para que nos deixassem em paz. O braço de ferro começava a tender para o lado dos assaltantes.
Lá fora aquela rua tinha o aspecto de um dia normal depois do almoço: muito movimento de veículos e pessoas, alguns corpos espalhados pelo chão, muito lixo, muita droga trocada por dinheiro, muita droga a circular nas veias dos consumidores. A três ou quatro metros dois elementos do exército colombiano, conversavam animadamente. Pareciam deslocados. Carros da polícia passavam, serenos, mesmo ao lado da vitrina onde estávamos sequestrados.
Victor, por entre a censura pela leviandade do acto, concluía que tínhamos que entregar a máquina. Com a minha ajuda, Alberto debruçava-se cada vez mais sobre o saco com a Nikon que eu não queria perder. Num momento de lucidez ouvi, de novo, “tienes que pagar” e atirei:
- Quanto?
- Mil e quinhentos dólares.
Victor respondeu que era um absurdo. Eu meti a mão no bolso e a única nota que tinha era de dois mil pesos, nem cinquenta cêntimos valia. Olhei em desespero para os militares que estavam a dois passos:
- Mira, aqui la policia no te hace nada. - Disparou o homem de camisola preta da Puma e barba de uma semana.
Voltei a arguir que era jornalista português, que estava de visita aos Hogares Claret do padre Gabriel, que nem sequer precisava das fotografias, que…
- Tienes que pagar.
Victor tentou negociar o preço. E nesse momento entraram os dois militares, muito pachorrentamente, na loja. Perante a cena de iminente assalto com recurso a arma perguntaram:
- Que se pasa aqui?
A combinação da negociação encetada por Victor, com o lento pedido de identificação das autoridades, sobretudo preocupados com a minha falta de documentos, permitiu afrouxar a pressão de dez minutos infernais e recuperar um certo equilíbrio de forças.
A pouco e pouco eu e Alberto libertámo-nos das tenazes e esgueiramo-nos para a porta, pretextando com a procura dos documentos em falta. Victor ficou a concluir o acordo. Na frente dos militares um dos assaltantes esticou a arma escondida no blusão de ganga e vomitou uma última ameaça:
- Te conocemos de aqui. Sabemos quien es e onde trabajas. Tienes que pagar. Se no pagares te mato.
Saímos, incólumes, com a Nikon intacta no saco de Alberto. Minutos depois Victor juntou-se a nós.
- Tienes que pagar. 50 mil pesos.
Victor foi entregar o dinheiro. A fotografia da rua da lixeira humana tinha ficado muito barata. No abraço de despedida que dei a Alberto Parra deve ter ficado presa a angústia que sentia pelo que lhe podia acontecer.
- No te preocupes. No pasa nada.
No táxi, já a caminho do aeroporto, o motorista estupefacto por tão estranho local para recolher turistas, não parava de fazer perguntas:
- Ustedes se quedaram aqui? No Cartucho? Mas porquê? Ustedes no sabem que esta es la peor zona de Bogotá? Es muy peligroso estar por aqui. No os avisaram? És mucho peligroso…
- Eu sei. Eu sei.

(os diálogos em espanhol não respeitam a gramática mas apenas a fonética)

Comentários

Anónimo disse…
Victor

Não é por desleixo que não deixo uma marca neste teu espaço.
Só para dizer que está fabulástico (fabuloso e fantástico) o teu blog.
Continua a nos proporcionar boas leituras!

Da tua Amiga...
Anónimo disse…
HOLA VICTOR
mi portuges es malo pero tu español es bueno de modo que no va aver ningun problema, es bueno que te hayas llevado esta impresion de lo que son los paramilitares de Colombia es una pequeña muestra de lo que ocurre en un territorio controlado supuestamente por el gobierno, y afortunadamente no paso nada , hable con ese hombre y llegamos a cuerdos como que cada quien por su lado, espero que las fotos hayan captado la descomposicion social a la que nos sometemos diaramente en nuestro pais que tiene teritorios controlados para el expenduio de drogas, te puedes inmaginar que sucedera en sitios donde no hay sino presencia de paramilitares la violencia y el imperio de muerte es lo unico que impera.

te quiero Alberto Parra G.
Anónimo disse…
Amigo Victor,
Obrigado por este rasgo de coragem! Por ser mais um daqueles que nos continua a alertar, que afinal sempre existem dois mundos, duas realidades mas apenas uma só cruel realidade, que continuámos a querer ignorar e não ver, porque em Cartucho as regras do jogo são:
Pagar Para Ver.
Armando Lopes
Anónimo disse…
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.

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